Híbrido

Civilizações arcaicas imperaram até o século V. Caracterizavam-se pela presença de conceitos advindos da vida prática, cotidiana. Eram conceitos malandros, pragmáticos e adaptáveis a situações reais de vida. Caracterizavam um ser aberto ao mundo, sem a proteção de subvenções. Sem a pedanteria de teorias gerais, pseudamente aplicáveis e corretas sob quaisquer condições. Seus deuses eram locais, oportunistas. Podia ser substituído, como o treinador de um time de futebol. Igualmente, podiam ser hibridizados, como povos e ritmos.

Aos poucos, deu-se uma intelectualização nos processos de estima da realidade. O ser começa a perder a simultaneidade de participante e observador. No Ocidente, este processo parece iniciar-se com Parmênides e Xenophanes. Ganha no Platonismo a preponderância da teoria sobre a experiência. Aristóteles sacramenta este desenvolvimento. Inventa a alma. Desqualifica o corpo, as mulheres. Aperfeiçoa uma arma de dominação. Sua ousia.

Isto culmina com o desenvolvimento da civilização européia, promovendo e institucionalizando a arrogância de pessoas que achavam-se no direito de invadir o domicílio dos outros, furtar seus bens materiais e ideológicos. Matar, roubar. Escravidão ou morte.

Sob tal imoralidade financiariam a moral demasiadamente humana de suas bilolices. Era a cultura de um ser mimado e desdentado.  Incrivelmente arrogante e desrespeitoso. E tudo era construído e secularizado pelo sangue de escravos. Índios, negros e outros.

Assim, puderam Goethe, Steiner, Nietzsche, Boulez, Brecht, Kant e Gobineau, Hitler e Schönberg sonhar seus sonhos malucos e irrealizáveis. Nós custeávamos suas elucubrações debilóides com a destruição de nossa sabedoria arcaica. A cultura européia mantém ainda todos os traços de sua origem.

O Brasil tem mais traços daquele outro mundo devassado. A pluralidade de deuses, o ecletismo pragmaticista em consultá-los, decidindo-se pelo que resolve. A abundância de conceitos malandros, dos quais nos orgulhamos. O predomínio da capacidade de metamorfosibilidade que promove a criatividade. Mais que tudo, o poder de uma centrifugalidade que impede o elitismo, classicismo e total predomínio de conceitos e idéias platônicas. O jogo que decide a preponderância da civilização ocidental acabou de iniciar. Ao menos aqui e agora.

Entre nós, os índios manifestavam em sua religião e mitologia um ecletismo condimentado com um pragmatismo característico. Tratava-se de um processo compositor que os protegia, principalmente dos perigos do absolutismo teológico, chegado com o cristianismo: o mito do deus da verdade única e absoluta, universal.

No Milton Nascimento, dos anos setenta, encontra-se muito dos modos e processos compositores e cognitivos daquele mundo arcaico. Trata-se de um sinal e promessa. A sugestão da reforma civilizatório que queremos. Podemos. Isto deu ao seu trabalho a qualidade de um paradigma musical, um matiz de supra e infra-realidade incomensurável. Como resultado, uma super-realidade.

Milton era o que a Antropofagia Cultural e o Tropicalismo quereriam ser. O projeto de inauguração da reforma civilizatória brasileira, efetivada pelo hibridismo e mameluquismo, desenvolvido, mais tarde, pelo citadino brasileiro moderno. Tudo isso, contudo, acontecendo em toda parte, em todos os sentidos, simultaneamente. Sem gênios idealistas, românticos e convencidos. Mas procurando e encontrando porta-vozes.

Abh parece querer e poder ser um deles. Parece perceber tais possibilidades, seus perigos e riquezas. Conscientemente tece seu trabalho musical como participante e observador da cultura arcaica, do nordeste brasileiro. Apega-se a ela. Compõe seu Quilombo, artística e belicosamente. Andou e anda convocando e invocando todos os santos e exus. Ouve gritos nas matas, de escravos torturados, queimando em tachos.

Abh tem o instinto de respeitar esta realidade, utilizando construtivamente a energia da ira e da revolta. E, simultaneamente, a coragem de agir em predileção para fazer disto a resposta balbuciada nas ruas dos bairros mais simples de sua cidade.

Redefine e direciona seu mundo cotidiano, lançando mão do mesmo tipo de conceitos malandros, advindos do desejo de sincronizar anseios individuais e coletivos. Este elemento, marcante e característico em artistas brasileiros, aparece em Abh em modo particular e vigoroso.

Isto ouve-se em sua música. Decifra-se semioticamente na articulação de seus textos e projetos: A incrementação da cultura em que vive sob a predileção de ser simultaneamente participante e observador, sob o pragmatismo transcendental vivente na região, sob a força da decisão de unir seu destino ao da cultura em que vive e nasceu.

     Edson Melo
Warmehuizen, Holanda (Julho de 2006)